Um relatório inédito sobre as violências portugueses na frente moçambicana da 1ª Grande Guerra

António Manuel Hespanha

Resumo


Os juristas romanos tinham inventado uma etimologia para a palavra latina
equivalente a escravo. Servus proviria de servare (conservar), porque os escravos seriam, originariamente, aqueles inimigos vencidos na guerra que, podendo ser mortos, tinham sido conservados, para tirar partido dos seus serviços. Com uma terminologia mais moderna – importada de G. Agamben – o que ocorrera fora a transformação dos homines sacri – de vida descartável - em homines laborantes, - em máquinas biológicas de produção da utilidades para a república.
As relações de extrema dominação – nas colónias ou noutros contextos – oscilou basicamente entre estes dois pólos. As populações dominadas foram: (i) ou consideradas como destinadas ao extermínio – como os “tapuias” ou “índios bravos” brasileiros, no sec. XVII – (ii) ou preservadas como fonte de trabalho. O fim da  escravatura não acabou com este binómio. Por razões culturais ou eugénicas, certos povos foram fulminados com uma politica de aniquilação – como os Herero e os Nama, no Sudoeste Africano (Damaralândia) alemão, nos inícios do sec. XX -, outros foram mantidos numa “vida nua” de homens trabalhadores, embora numa situação juridicamente não protegida, que os aproximava do homo sacer, irrelevante para o direito. A guerra, de novo, era o mais típico caldo de cultura desta situação, paradoxal em plena vigência de Estados de cidadãos sujeitos de direito. A história que se conta neste texto passa-se no norte de Moçambique, durante a I Grande Guerra. Os seus actores são portugueses, ingleses e os seus inimigos alemães. Mas, para além destes sujeitos da história, existe uma massa de meros viventes, fl utuando entre o domínio dos beligerantes, sem estatuto político na arena internacional e, na verdade, juridicamente quase descartáveis, mesmo na ordem interna ou perante as leis da guerra - os carregadores dos três exércitos no terreno. No final da guerra, os ingleses insistem na averiguação e punição de maus tratos exercidos sobre eles pelos portugueses. Um magistrado português investiga, localmente, durante mais de um ano, as denúncias feitas. Porém, o resultado mais claro dessa investigação, conduzida com empenho e cuidado, é a incerteza de tudo quanto dizia respeito a esta gente – sem nome certo, de morada difi cilmente identifi cável, de narrativas com um estatuto quase ficcional, de pertenças políticas indistintas, de vinculação política controversa. Homens apenas vivos, transportadores; como zombies num mundo de Estados de cidadãos.

Palavras-chave: Grande Guerra, Moçambique, carregadores, violência colonial, Vida nua; Agamben


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